Após presidente assumir o cargo e dar giro na política econômica, os “bate-voltas” para compras despencaram. Agora, alguns argentinos até começam a fazer o movimento contrário, cruzando para o Brasil
“Meu Deus do céu, o fernet está R$ 42”, dispara o gaúcho Rodinei Luís, 45, apontando para a clássica bebida alcoólica argentina enquanto estaciona o carrinho em frente ao caixa do supermercado. “Antes estava R$ 17, estão o dobro as coisas”, se surpreende, levando as mãos à carteira.
Rodinei está no atacadão El Cóndor, queridinho dos brasileiros que atravessam a fronteira do rio Uruguai de balsa para aproveitar os baixos preços do país vizinho, na cidade nortenha de Oberá. Ou atravessavam.
A partir de dezembro, quando Javier Milei assumiu a Presidência e deu um giro na política econômica, os “bate-voltas” para compras despencaram. Agora, alguns argentinos até começam a fazer o movimento contrário, cruzando para o Brasil para fugir das próprias gôndolas, algo que não se via há anos.
O ônibus da agência de viagens de Rodinei, que antes levava cerca de 80 pessoas por mês partindo de Santa Rosa (RS), agora transporta apenas um pequeno grupo que foi pescar e resolveu parar para levar alguns itens que ainda valem a pena. “A procura caiu a zero, nossa última excursão foi em 12 de dezembro”, diz ele.
Em 2023, as travessias terrestres e fluviais de menos de um dia à Argentina dispararam, com a inflação do país em constante alta e o peso cada vez mais desvalorizado em relação ao dólar e ao real durante a gestão do peronista Alberto Fernández. Foram 2,4 milhões de viagens, contra 1,5 milhão no ano anterior.
Sulistas que vivem nos limites do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná eram atraídos pelo preço e qualidade principalmente de produtos de limpeza, higiene e alimentos como farinha.
“O sabão em pó e o detergente deles são muito melhores que os nossos”, diz o autônomo Júlio César Santos, 51, outro dos poucos brasileiros em frente ao supermercado, abastecendo o porta-malas com dezenas de sacolas amarelas e um cooler abarrotado de gelo para os iogurtes.
Frequentemente, eles acompanhavam as promoções nas redes sociais do atacadão, rachavam a gasolina com amigos ou parentes e cruzavam a fronteira para “fazer rancho”, as compras do mês. Um desodorante podia custar R$ 3, e o combustível com preços controlados gerava filas nos postos.
Mas isso mudou depois que Milei chegou, acabou com os congelamentos e promoveu uma forte desvalorização da moeda local (que antes tinha um valor irreal frente ao dólar), em busca de seus principais objetivos: corrigir os preços, equilibrar as contas públicas, parar de emitir dinheiro e conter a inflação histórica no país.
Neste fevereiro, ele comemorou seu segundo mês consecutivo de superávit. Por outro lado, viu a pobreza subir a 57% da população, já que as medidas fizeram os preços explodirem muito acima dos salários. O dólar paralelo “blue”, usado pelos turistas, também não acompanhou a alta, portanto o dinheiro estrangeiro passou a valer menos.
Nem o vinho escapou, apesar de ainda continuar mais vantajoso do que no Brasil. “Vivemos do brasileiro que entra para comprar, mas o movimento caiu uns 60%”, conta Darío Sánchez, 39, gerente da adega que fica bem em frente à balsa de Alba Posse, do lado argentino da fronteira, na província de Missiones.
“Abrimos em fevereiro e o fluxo foi crescente durante todo o ano. Depois de 10 dezembro sofremos um impacto, em janeiro se estabilizou, e agora tivemos uma baixa de novo”, conta ele em meio às estantes. Os vinhos que custavam em média 3 mil pesos (R$ 15 na cotação paralela atual) saltaram para 7 mil pesos (R$ 35)
O “turismo de compra” na fronteira depende muito do câmbio, por isso sua intensidade flutua. “Não é como no Paraguai que temos uma assimetria de preços estrutural. A diferença com o Brasil é cambial”, explica Gerardo Beltrán, secretário da Confederação Argentina da Média Empresa (Came) que trabalha na região.
Ele tem uma visão mais extrema. Afirma que a entrada de brasileiros para comprar “se acabou” e que isso é ainda mais visível em cidades argentinas com maior fluxo de mercadorias, como Bernardo Irigoyen, na fronteira seca com Santa Catarina, e Puerto Iguazú, na tríplice fronteira próxima às Cataratas do Iguaçu.
Nesses locais, diz, começou-se a ver algo que não era comum há muito tempo: “Hoje os argentinos já estão cruzando para o Brasil para comprar alguns produtos de cesta básica e higiene pessoal. O fluxo se reverteu totalmente”. Arroz, açúcar e azeite são alguns dos produtos cobiçados, mas o poder de compra e as quantidades levadas pelos argentinos ainda é menor.
O que acontece com o Brasil também acontece com outros países limítrofes, como Uruguai, separado por uma barca de Buenos Aires; Chile, também de fácil acesso pela estrada que cruza a Cordilheira dos Andes; e Paraguai, onde uma das principais ligações é uma ponte entre os grandes municípios de Encarnación e Posadas.
Ali, por exemplo, as travessias para comprar gasolina do lado argentino eram tão frequentes que se desenvolveu um mercado ilegal de galões de 5 ou 20 litros.
“Isso também se terminou”, diz Beltrán. Após as medidas de Milei, o preço dos combustíveis acumulou altas de mais de 80% e se emparelhou ao dos países vizinhos.
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